Femen e a islamofobia
Em março desse ano, Amina Tyler, uma jovem tunisiana de 19 anos, criou a
página 'Femen Tunísia' no Facebook, onde postou duas fotos em que usava o próprio
corpo como plataforma de protesto. Em uma das fotos ostentava os seguintes
dizeres sobre o dorso nu: “Meu corpo me
pertence, não é uma fonte de honra de ninguém”, em árabe, e na outra, “Foda-se
a moral”, em inglês.
A imagem teve
imensa repercussão em seu país, em que, segundo Censo de 2004, 98% da população
é muçulmana. Um clérigo muçulmano repudiou a ação da moça, falando que ela
merecia chibatadas para não dar exemplo às demais. O Femen, movimento
internacional ao qual a jovem tinha se filiado, famoso por seus protestos com
belíssimas mulheres de seios de fora e coroas de flores nas cabeças, e por isso
mesmo, uma fonte certa de boas vendagens para capas de jornais e ampla
penetração na mídia, vendeu para toda a mídia internacional o seguinte fato "Mulher
é condenada à morte por fazer topless em protesto".
Entretanto, não
existe pena de morte na Tunísia e a "condenação" não veio do governo
da Tunísia. É a opinião de um líder religioso, que não tem poder nenhum de
mandar açoitar ou apedrejar alguém. A Tunísia é, aliás, um dos mais seculares e
liberais países entre os arábes. Neste país, desde os anos 1960, a ex-colônia francesa
mantém uma legislação avançada com relação aos direitos das mulheres. A
poligamia foi banida, o divórcio é igualitário e o aborto é permitido. As
mulheres ocupam cerca de dois terços das vagas nas universidades e apenas 3%
das jovens entre 15 e 19 anos são casadas, divorciadas ou viúvas (na década de
1960, esse índice chegava a 50%).
Enquanto o Femen
anunciava que Amina estava presa, sem direito a se expressar ou sair de casa,
Bouchra Bel Haj Hmida, sua advogada, uma famosa ativista pelos direitos das
mulheres, afirmava que ela estava bem e com a família. Enquanto o Femen alegava
que a garota não tinha liberdade de expressão, ela deu entrevistas no famoso
talk show tunisiano “Laa Ba’s” (Sem Preocupações) e em outros veículos como
“Jadal Tunisia” (Debate Tunisia).
Para protestar
contra a "condenação" de Amina o Femen promoveu um "Topless
Jihad Day", em que várias manifestantes mostraram os seios pela liberdade
das mulheres muçulmanas. As Femen chamaram a data de "nova primavera
árabe" e escreveram que o evento era um grito contra "o ódio letal
dos islâmicos, bestas desumanas para os quais matar uma mulher é mais natural
que reconhecer o direito dela de fazer o que quiser com o corpo dela". Protestos foram realizados em vários locais do mundo, inclusive no Brasil, e dentro de uma mesquita na Suécia.
Isso gerou um outro
movimento, o Muçulmanas contra o Femen, que, além de postar fotos de mulheres
islâmicas com cartazes com dizeres como "A nudez não me liberta e eu não
preciso ser salva", escreveu na sua página no FB: "Entendemos que é
difícil para muitas de vocês 'feministas' coloniais brancas entenderem que
muçulmanas e mulheres não-brancas podem pensar em sua própria autonomia, e
reagir também, e falar por si. Temos orgulho de sermos muçulmanas, e estamos
cansadas das sua verborragia racista e colonialista, sempre disfarçada de
'Liberação Feminina'!"
Em um manifesto
assinado pelo grupo e traduzido para o português pela revista virtual Pittacos,
as mulheres acusam o Femen de ter tomado partido em uma luta que não é das
ocidentais e não deveria ser feita usando a nudez. As muçulmanas também
argumentam que as integrantes do Femen são preconceituosas em relação ao Islã.
A líder ucraniana
do Femen, Inna Shevchenko, respondeu também na rede social que não acredita no
protesto das muçulmanas. “Elas dizem que são contra nós, mas continuamos
afirmando que estamos aqui por elas. Elas escrevem que não precisam de
libertação, mas em seus olhos está escrito ‘Ajude-me’.”
A própria Amina,
que estava sumida desde que foi ameaçada, apareceu num canal francês para dizer
que não quer estar associada com as ações mais recentes do Femen, apesar de
continuar apoiando o grupo, porque "elas são verdadeiras feministas".
Porém, para Amina, "elas insultaram todos os muçulmanos em todo lugar e
isso não é aceitável". O Femen declarou, de modo característico, que era
claro que "Amina não estava falando livremente".
Sobre o ocorrido a ativista Sorayah Misleh escreveu:
'Seria o feminismo anticolonial contemporâneo, o qual
questiona movimentos de mulheres que se baseiam na contradição inventada
Oriente-Ocidente para ditar regras de comportamentos às árabes e muçulmanas e,
portanto, em ideias que mantêm o colonialismo e o imperialismo. Entre essas,
as de que as ditas “ocidentais” seriam a civilização a ser levada àqueles povos
atrasados. Mostra disso são feministas que veem na vestimenta a opressão,
quando pode ser uma característica cultural. Caso específico do véu islâmico,
que, em si, não significa submissão. Tanto é que mulheres na Turquia e na
França, por exemplo, protestaram quando tentaram lhes impedir o direito de
cobrir os cabelos. O problema não é o uso, mas a imposição. Contra essa, sim,
deve-se lutar contra.'
Resistência feminina no Oriente Médio
Em
junho de 2005, na primeira dissensão pública por mulheres desde a Revolução
Iraniana, mais de 250 mulheres protestaram contra a descriminação, do lado de
fora da Universidade de Teerã, gritando: "Nós somos mulheres, somos
crianças desta terra, mas não temos nenhum direito". Foi reportado
que policiais bateram em algumas mulheres, e prenderam outras, e 200 outras
mulheres não conseguiram juntar-se à manifestação.
Desde
2006, além da petição dos direitos legais, as ativistas dos direitos das
mulheres iranianas têm lutado para mudar a lei penal que permite a pena capital
- por apedrejamento - pelo crime de adultério. Sob o código penal
iraniano, meninas de até nove anos de idade podem ser executadas por
enforcamento ou apedrejamento pelos chamados "crimes de moralidade",
como adultério.
Em
março de 2007, 33 mulheres ativistas foram presas em Teerã, após protestarem do
lado de fora de um tribunal revolucionário onde cinco ativistas estavam sendo
julgados por participarem de uma manifestação sobre direitos humanos, em junho
de 2006. Esta manifestação era para pedir direitos iguais para as
mulheres na lei penal do Irã, além do código de família, e práticas da
"lei de sangue". As cinco ativistas que foram presas novamente
junto com as manifestantes do tribunal foram acusadas de agirem contra a
segurança nacional, indo a um encontro ilegal.
Movimentos
de mulheres iranianas foram particularmente ativos na ocasião da campanha
eleitoral de 2009. Diversas organizações e militantes que reivindicavam a
igualdade de direitos aproveitaram esse tempo político forte para formar uma
aliança chamada União dos Movimentos de Mulheres para a Apresentação das
Reivindicações nas Eleições. Pela primeira vez, 700 militantes e mais de 40
associações agiram juntas para levar a questão das mulheres aos debates
eleitorais. Algumas, como Azam Taleghani e Shahla
Sherkat, podiam estar associadas aos movimentos do feminismo islâmico
iraniano; outras, como Mansoureh Shojai, se inscreviam numa perspectiva laica.
Isso só para mencionar casos de resistência das mulheres arábes apenas em Teerã, capital do Irã e cidade natal do objeto de estudo do nosso Projeto, a fotógrafa Shadi Ghadirian. Há centenas de exemplos como esses de resistência e luta das mulheres arábes, o que parece que o Femen desconhece, ou ignora, em prol de um discurso que prega a intolerância e a islamofobia.
Feminismo(s)
arábe(s)
No Oriente Médio os movimentos
feministas são tão variados quanto seus contextos sociais e políticos. As
reivindicações e as correntes políticas, assim como as práticas políticas das
militantes, são tão diversas, que seria inútil pensar numa uniformidade de
engajamentos.
Já no início do século 20,
mulheres se organizam para reivindicar direitos na Turquia, no Irã, no Egito,
no Líbano, na Síria, na Palestina etc. Essas pioneiras se apoiam em ideias
nacionalistas e modernistas da época, e seu objetivo é abrir o espaço público
para as mulheres. A escolarização das meninas e o papel da mulher no progresso
nacional são reivindicações partilhadas por inúmeros movimentos femininos.
Desde 1906, em Teerã, no
Irã, mulheres se manifestam na rua para reivindicar seus direitos enquanto
cidadãs. No Egito, o primeiro jornal a reivindicar para si o título de
feminista é publicado em 1925 (trata-se de A egípcia – Revista mensal de
política, feminismo, sociologia-arte). Na Síria, Nazîra Zayn Al-dîn publica
a obra intitulada A favor ou contra o véu. Esse primeiro tempo das
mobilizações das mulheres no Oriente Médio vê nascer a primeira conferência das
mulheres árabes (Cairo, dezembro de 1944), que resulta na formulação de
reivindicações políticas dirigidas ao governo: restrições no que diz respeito à
poligamia e à prática masculina do divórcio, idade legal do casamento aos 16
anos, educação mista, cuidados médicos para as populações desfavorecidas. Essa
primeira onda de movimentos apoia-se em uma abordagem nacionalista do
feminismo.
A segunda grande etapa
acontece entre 1945 e 1980. Estados autoritários (Irã, Egito, Iraque, Síria)
conferem direitos às mulheres, e instaura-se um feminismo de Estado, que é
assimilado à segunda onda de movimentos. Os governos concedem alguns direitos,
sempre limitando as formas de reivindicação. Assim, Nasser, no Egito, concede o
direito de voto às mulheres, mas dissolve todas as organizações femininas.
Desde os anos 80, em alguns contextos emerge outro movimento político de
mulheres: o feminismo islâmico. No Irã, na Jordânia e no Kuwait, algumas
militantes se apoiam numa releitura do Corão para defender seus direitos,
denunciando a leitura patriarcal que dele é feita e se mobilizando contra as
discriminações políticas, sociais, econômicas e jurídicas entre os sexos.
Análise das Fotos - A experiência e a vivência íntima da mulher no mundo arábe
Like Every day:
Retratando a sua própria experiência, Shadi Ghadirian nesse ensaio mostra os conflitos que a mulher moderna vive sob as leis do código Shariah. Além disso, as fotos foram produzidas após ter se casado e vivenciado um ambiente em que as mulheres já estão produzidas e definidas.
Colocando objetos e utensílios domésticos no rosto das mulheres, ela faz uma crítica a essa mulher que não pode e nem é reconhecida, seu rosto esta sempre tampado por algo. O anonimato se torna algo do cotidiano.
Os utensílios domésticos são introduzidos nessa cultura e essas mulheres foram reduzidas, ironicamente, a uma identidade de apenas donas de casa, serventes de um mundo moderno.
O próprio título da série nos introduz ao tema do cotidiano, dos materiais usuais e do que essas mulheres enfrentam todos os dias, em especial os estereótipos.
Be Colorful:
Nesta série, Ghadirian brinca com texturas e cores em justaposição com as modelos. Esses retratos compostos parecem retratar mulheres que não se exibem por completo, inseguras e distantes da sociedade. Trabalha também com a sensualidade da mulher, em que sua beleza e intimidade delicadamente estão escondidas.
Ao utilizar um vidro pintado que fica na frente da modelo, como forma de textura, podemos sentir que a presença da mulher não é por completo, existe um obstáculo que impede de conhecer, de interagir com essa mulher, mesmo que seu olhar seja chamativo.
Unfocused:
Fotografias fora de foco, nas quais rostos não são mostrados, sabe-se apenas que é uma mulher, com vestido preto, exibindo seus braços, pescoço e pés. Uma maneira abstrata de revelar uma mulher, mesmo não sabendo por completo sua identidade. Mais uma vez Ghadirian trabalha com a ideia de não exibir por completo, dando a entender um ambiente de insegurança. Um lugar onde a mulher só consegue se mostrar se for no anonimato.
Shadi Ghadirian retrata esse universo feminino de forma crítica e abstrata, para que o leitor de suas obras tenha diferentes motivos para interpretar, pois estamos falando de culturas diferentes, de um cotidiano que para muitos não condiz com a realidade. De maneira sensível, a fotógrafa consegue mostrar um pensamento crítico e exibir suas considerações em relação ao lugar da mulher no mundo árabe.