quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O direito de falar por si mesma #2

Femen e a islamofobia


Em março desse ano, Amina Tyler, uma jovem tunisiana de 19 anos, criou a página 'Femen Tunísia' no Facebook, onde postou duas fotos em que usava o próprio corpo como plataforma de protesto. Em uma das fotos ostentava os seguintes dizeres sobre o dorso nu:  “Meu corpo me pertence, não é uma fonte de honra de ninguém”, em árabe, e na outra, “Foda-se a moral”, em inglês.
A imagem teve imensa repercussão em seu país, em que, segundo Censo de 2004, 98% da população é muçulmana. Um clérigo muçulmano repudiou a ação da moça, falando que ela merecia chibatadas para não dar exemplo às demais. O Femen, movimento internacional ao qual a jovem tinha se filiado, famoso por seus protestos com belíssimas mulheres de seios de fora e coroas de flores nas cabeças, e por isso mesmo, uma fonte certa de boas vendagens para capas de jornais e ampla penetração na mídia, vendeu para toda a mídia internacional o seguinte fato "Mulher é condenada à morte por fazer topless em protesto". 

Entretanto, não existe pena de morte na Tunísia e a "condenação" não veio do governo da Tunísia. É a opinião de um líder religioso, que não tem poder nenhum de mandar açoitar ou apedrejar alguém. A Tunísia é, aliás, um dos mais seculares e liberais países entre os arábes. Neste país, desde os anos 1960, a ex-colônia francesa mantém uma legislação avançada com relação aos direitos das mulheres. A poligamia foi banida, o divórcio é igualitário e o aborto é permitido. As mulheres ocupam cerca de dois terços das vagas nas universidades e apenas 3% das jovens entre 15 e 19 anos são casadas, divorciadas ou viúvas (na década de 1960, esse índice chegava a 50%).
Enquanto o Femen anunciava que Amina estava presa, sem direito a se expressar ou sair de casa, Bouchra Bel Haj Hmida, sua advogada, uma famosa ativista pelos direitos das mulheres, afirmava que ela estava bem e com a família. Enquanto o Femen alegava que a garota não tinha liberdade de expressão, ela deu entrevistas no famoso talk show tunisiano “Laa Ba’s” (Sem Preocupações) e em outros veículos como “Jadal Tunisia” (Debate Tunisia).
Para protestar contra a "condenação" de Amina o Femen promoveu um "Topless Jihad Day", em que várias manifestantes mostraram os seios pela liberdade das mulheres muçulmanas. As Femen chamaram a data de "nova primavera árabe" e escreveram que o evento era um grito contra "o ódio letal dos islâmicos, bestas desumanas para os quais matar uma mulher é mais natural que reconhecer o direito dela de fazer o que quiser com o corpo dela". Protestos foram realizados em vários locais do mundo, inclusive no Brasil, e dentro de uma mesquita na Suécia.

Isso gerou um outro movimento, o Muçulmanas contra o Femen, que, além de postar fotos de mulheres islâmicas com cartazes com dizeres como "A nudez não me liberta e eu não preciso ser salva", escreveu na sua página no FB: "Entendemos que é difícil para muitas de vocês 'feministas' coloniais brancas entenderem que muçulmanas e mulheres não-brancas podem pensar em sua própria autonomia, e reagir também, e falar por si. Temos orgulho de sermos muçulmanas, e estamos cansadas das sua verborragia racista e colonialista, sempre disfarçada de 'Liberação Feminina'!"
Em um manifesto assinado pelo grupo e traduzido para o português pela revista virtual Pittacos, as mulheres acusam o Femen de ter tomado partido em uma luta que não é das ocidentais e não deveria ser feita usando a nudez. As muçulmanas também argumentam que as integrantes do Femen são preconceituosas em relação ao Islã.
A líder ucraniana do Femen, Inna Shevchenko, respondeu também na rede social que não acredita no protesto das muçulmanas. “Elas dizem que são contra nós, mas continuamos afirmando que estamos aqui por elas. Elas escrevem que não precisam de libertação, mas em seus olhos está escrito ‘Ajude-me’.”
A própria Amina, que estava sumida desde que foi ameaçada, apareceu num canal francês para dizer que não quer estar associada com as ações mais recentes do Femen, apesar de continuar apoiando o grupo, porque "elas são verdadeiras feministas". Porém, para Amina, "elas insultaram todos os muçulmanos em todo lugar e isso não é aceitável". O Femen declarou, de modo característico, que era claro que "Amina não estava falando livremente".  

 
Sobre o ocorrido a ativista Sorayah Misleh escreveu:

'Seria o feminismo anticolonial contemporâneo, o qual questiona movimentos de mulheres que se baseiam na contradição inventada Oriente-Ocidente para ditar regras de comportamentos às árabes e muçulmanas e, portanto, em ideias que mantêm o colonialismo e o imperialismo. Entre essas, as de que as ditas “ocidentais” seriam a civilização a ser levada àqueles povos atrasados. Mostra disso são feministas que veem na vestimenta a opressão, quando pode ser uma característica cultural. Caso específico do véu islâmico, que, em si, não significa submissão. Tanto é que mulheres na Turquia e na França, por exemplo, protestaram quando tentaram lhes impedir o direito de cobrir os cabelos. O problema não é o uso, mas a imposição. Contra essa, sim, deve-se lutar contra.'

Resistência feminina no Oriente Médio
Em junho de 2005, na primeira dissensão pública por mulheres desde a Revolução Iraniana, mais de 250 mulheres protestaram contra a descriminação, do lado de fora da Universidade de Teerã, gritando: "Nós somos mulheres, somos crianças desta terra, mas não temos nenhum direito".  Foi reportado que policiais bateram em algumas mulheres, e prenderam outras, e 200 outras mulheres não conseguiram  juntar-se  à manifestação. 
Desde 2006, além da petição dos direitos legais, as ativistas dos direitos das mulheres iranianas têm lutado para mudar a lei penal que permite a pena capital - por apedrejamento - pelo crime de adultério.  Sob o código penal iraniano, meninas de até nove anos de idade podem ser executadas por enforcamento ou apedrejamento pelos chamados "crimes de moralidade", como adultério.
Em março de 2007, 33 mulheres ativistas foram presas em Teerã, após protestarem do lado de fora de um tribunal revolucionário onde cinco ativistas estavam sendo julgados por participarem de uma manifestação sobre direitos humanos, em junho de 2006.  Esta manifestação era para pedir direitos iguais para as mulheres na lei penal do Irã, além do código de família, e práticas da "lei de sangue".  As cinco ativistas que foram presas novamente junto com as manifestantes do tribunal foram acusadas de agirem contra a segurança nacional, indo a um encontro ilegal.
Movimentos de mulheres iranianas foram particularmente ativos na ocasião da campanha eleitoral de 2009. Diversas organizações e militantes que reivindicavam a igualdade de direitos aproveitaram esse tempo político forte para formar uma aliança chamada União dos Movimentos de Mulheres para a Apresentação das Reivindicações nas Eleições. Pela primeira vez, 700 militantes e mais de 40 associações agiram juntas para levar a questão das mulheres aos debates eleitorais. Algumas, como Azam Taleghani e Shahla Sherkat, podiam estar associadas aos movimentos do feminismo islâmico iraniano; outras, como Mansoureh Shojai, se inscreviam numa perspectiva laica.

Isso só para mencionar casos de resistência das mulheres arábes apenas em Teerã, capital do Irã e cidade natal do objeto de estudo do nosso Projeto, a fotógrafa Shadi Ghadirian. Há centenas de exemplos como esses de resistência e luta das mulheres arábes, o que parece que o Femen desconhece, ou ignora, em prol de um discurso que prega a intolerância e a islamofobia.

Feminismo(s) arábe(s)
No Oriente Médio os movimentos feministas são tão variados quanto seus contextos sociais e políticos. As reivindicações e as correntes políticas, assim como as práticas políticas das militantes, são tão diversas, que seria inútil pensar numa uniformidade de engajamentos.

Já no início do século 20, mulheres se organizam para reivindicar direitos na Turquia, no Irã, no Egito, no Líbano, na Síria, na Palestina etc. Essas pioneiras se apoiam em ideias nacionalistas e modernistas da época, e seu objetivo é abrir o espaço público para as mulheres. A escolarização das meninas e o papel da mulher no progresso nacional são reivindicações partilhadas por inúmeros movimentos femininos.

 Desde 1906, em Teerã, no Irã, mulheres se manifestam na rua para reivindicar seus direitos enquanto cidadãs. No Egito, o primeiro jornal a reivindicar para si o título de feminista é publicado em 1925 (trata-se de A egípcia – Revista mensal de política, feminismo, sociologia-arte). Na Síria, Nazîra Zayn Al-dîn publica a obra intitulada A favor ou contra o véu. Esse primeiro tempo das mobilizações das mulheres no Oriente Médio vê nascer a primeira conferência das mulheres árabes (Cairo, dezembro de 1944), que resulta na formulação de reivindicações políticas dirigidas ao governo: restrições no que diz respeito à poligamia e à prática masculina do divórcio, idade legal do casamento aos 16 anos, educação mista, cuidados médicos para as populações desfavorecidas. Essa primeira onda de movimentos apoia-se em uma abordagem nacionalista do feminismo.

 A segunda grande etapa acontece entre 1945 e 1980. Estados autoritários (Irã, Egito, Iraque, Síria) conferem direitos às mulheres, e instaura-se um feminismo de Estado, que é assimilado à segunda onda de movimentos. Os governos concedem alguns direitos, sempre limitando as formas de reivindicação. Assim, Nasser, no Egito, concede o direito de voto às mulheres, mas dissolve todas as organizações femininas. Desde os anos 80, em alguns contextos emerge outro movimento político de mulheres: o feminismo islâmico. No Irã, na Jordânia e no Kuwait, algumas militantes se apoiam numa releitura do Corão para defender seus direitos, denunciando a leitura patriarcal que dele é feita e se mobilizando contra as discriminações políticas, sociais, econômicas e jurídicas entre os sexos.
            
Análise das Fotos - A experiência e a vivência íntima da mulher no mundo arábe
 Like Every day:





Retratando a sua própria experiência, Shadi Ghadirian nesse ensaio mostra os conflitos que a mulher moderna vive sob as leis do código Shariah. Além disso, as fotos foram produzidas após ter se casado e vivenciado um ambiente em que as mulheres já estão produzidas e definidas.
Colocando objetos e utensílios domésticos no rosto das mulheres, ela faz uma crítica a essa mulher que não pode e nem é reconhecida, seu rosto esta sempre tampado por algo. O anonimato se torna algo do cotidiano.
Os utensílios domésticos são introduzidos nessa cultura e essas mulheres foram reduzidas, ironicamente, a uma identidade de apenas donas de casa, serventes de um mundo moderno.
O próprio título da série nos introduz ao tema do cotidiano, dos materiais usuais e do que essas mulheres enfrentam todos os dias, em especial os estereótipos.

Be Colorful:



Nesta série, Ghadirian brinca com texturas e cores em justaposição com as modelos. Esses retratos compostos parecem retratar mulheres que não se exibem por completo, inseguras e distantes da sociedade. Trabalha também com a sensualidade da mulher, em que sua beleza e intimidade delicadamente estão escondidas.
Ao utilizar um vidro pintado que fica na frente da modelo, como forma de textura, podemos sentir que a presença da mulher não é por completo, existe um obstáculo que impede de conhecer, de interagir com essa mulher, mesmo que seu olhar seja chamativo.

Unfocused:





Fotografias fora de foco, nas quais rostos não são mostrados, sabe-se apenas que é uma mulher, com vestido preto, exibindo seus braços, pescoço e pés. Uma maneira abstrata de revelar uma mulher, mesmo não sabendo por completo sua identidade.   Mais uma vez Ghadirian trabalha com a ideia de não exibir por completo, dando a entender um ambiente de insegurança. Um lugar onde a mulher só consegue se mostrar se for no anonimato.   

Shadi Ghadirian retrata esse universo feminino de forma crítica e abstrata, para que o leitor de suas obras tenha diferentes motivos para interpretar, pois estamos falando de culturas diferentes, de um cotidiano que para muitos não condiz com a realidade. De maneira sensível, a fotógrafa consegue mostrar um pensamento crítico e exibir suas considerações em relação ao lugar da mulher no mundo árabe.

5 comentários:

  1. Interessante pensar sob uma outra perspectiva sobre o Femen. Mesmo que o ideal seja pertinente, os meios para lutar por ele podem estar sendo negativamente interferindo em valores culturais identitários de um outro povo. Precisa-se encontrar um meio termo para adequar essa luta às ocidentais e às muçulmanas.
    Num mundo globalizado pode haver a impressão de que o contato é sempre proporcionado entre os povos, seja pela internet, seja por viagens, mas, claramente, nesse caso, está faltando discussão e mais empatia para que os protestos sejam efetivos.

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  2. Gostei muito da postagem de vocês, meninas. Vocês exploraram muito bem a luta da mulher árabe por seus direitos e a forma como se enxergam como mulheres, dentro de sua cultura e sua religião. O distanciamento cultural pode dificultar para nós o entendimento da liberdade delas, porque é difícil para a gente se relacionar com os valores culturais e religiosos que elas vivem. Nesse sentido, acho que falta ao Femen mas sensibilidade para perceber as diferenças e as formas de se expressar, já que não podemos padronizar o sentimento de liberdade e esperar que ele signifique o mesmo para todas as mulheres. Foi uma reflexão muito interessante. Só achei que a análise do ensaio acabou ficando em segundo plano com todas as outras informações representadas.

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  3. Esse tema é mesmo complexo, abrange o entendimento de liberdade, da forte presença da religião e influência da cultura, mas acima de tudo acho que se trata da tolerância, ou da falta dela, pelos dois lados.
    Claro que um um assunto deste não poderia render uma postagem pequena e é por isso que estão de parabéns meninas. Mesmo o texto sendo extenso não cansamos de ler. Trabalharam muito bem a liguagem, as informações, as imagens e analises.
    Para ficar ainda melhor acho que que poderiam ter falado como foi fazer o trabalho, a experiência em si.

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  4. Muito boa reflexão, gostei muito da forma como construiram o texto , possibilitando o entendimento que tudo têm dois lados, principalmente acerca de assuntos tão delicados , envolvendo outras culturas.Confesso que não tinha muitas informações acerca do tema, e o texto contribuiu muito para construção de um panorama acerca do tema.

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  5. Olá! Adorei o post de vocês e é realmente um assunto delicado! Em alguns momento, quando penso sobre isso, começo a ter certa certeza de que pode haver uma parte de mulheres desses países que, por questões culturais, realmente se sintam bem em usar a burca ou o véu. Então, não vale generalizar o movimento, falando que todas as mulheres pedem ajuda, igual fez a líder ucraniana do Femen, a questão é muito mais complexa do que isso. Gostei muito da análise de vocês, pois trouxe diversas reflexões!

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